1.10.06

A Paranóia, de Júlio de Mattos

Um d'estes, notavel entre todos, é o de um paranoico-originario, que já aos 17 annos se cria victima de tentativas de envenenamento e em quem sempre uma exaggerada autophilia se notou. Mas, nem as idéas de perseguição, nem a hyperbolica opinião dos seus meritos lhe embargaram o passo no curso de direito, que concluiu. Ridiculo e profundamente desequilibrado, de grande memoria e de pequena reflexão, desconfiado, phantasista e discursador, foi fazendo o seu caminho até delegado de procurador regio na India Portuguesa. Ahi, excessos de toda a ordem, juntos a uma febre biliosa, aggravaram-lhe o mal; regressando, muito fraco, á metropole, systematisava o seu delirio até ao ponto de viver só e de passar habitualmente a ovos e a agua, que elle proprio ia colher de noite ás fontes. Um dia, tendo chamado a casa um operario para lhe encadernar uns livros, foi por este traiçoeiramente aggredido, recebendo na cabeça um extenso e profundo traumatismo. A partir d'esse dia, allucinações auditivas, que até então parecia não terem existido, irromperam com extranha violencia; ao mesmo tempo apossou-se do doente um sentimento intenso de terror e de anciedade que o levou, poucos dias depois do traumatismo, a projectar-se de uma janella abaixo, fazendo uma luxação. Simultaneamente, illusões visuaes, confusão constante de pessoas, rejeição de alimentos e absoluta insomnia. Trazido ao hospital, persistiu algum tempo n'esta situação; rapidamente, porém, idéas de grandeza, se juntaram. O encadernador, tentando matal-o, foi apenas um instrumento de quem, por inveja do seu alto genio incomparavel, buscava desfazer-se d'elle. Tornou-se aggressivo então, fabricando uma nova religião, crendo-se superior a Christo, e começou a manifestar idéas eroticas e allucunações visuaes: masturbava-se, dizia obscenidades, proclamava as excellencias da pederastia, dos amores lesbicos, e via mulheres núas em attitudes lascivas. Mas, subitamente, derivou a idéas hypocondriacas e d'estas a um delirio de humildade, rojando-se no chão, beijando os pés dos companheiros, chorando, pedindo perdão a todos, rejeitando os alimentos n'um intuito de penitencia. Pouco a pouco resvallou no mutismo, a physionomia tornou-se-lhe parada, inexpressiva, contrahiu habitos immundos, apresentou, n'uma palavra, o quadro da demencia com accentuada desnutrição. Por mezes persistiu n'este estado, indifferente a sollicitações naturaes, deitado sobre bancos ou no chão da enfermaria, movendo-se como um automato, não respondendo a ninguem.
Julguei-o então perdido e cheguei a consignar com segurança esta impressão clinica. Mas um dia, abruptamente, o doente dirige-se a mim, cumprimenta-me polidamente e diz-me que se sente, emfim, restabelecido, que deseja sahir, que quer escrever uma carta a um irmão para que venha buscado. Do pseudo-demente nada restava; a datar d'esse dia ficou o primitivo delirante, o perseguido-ambicioso quasi sem allucinações, que podia viver fóra do hospital e que eu, com effeito, deixei sahir algum tempo depois.
Isto passou-se em 1884; de então até hoje fez o doente duas novas entradas no hospital, reproduzindo quasi sem variantes o quadro que vimos de esboçar. Conta-me um irmão que o aggravamento da doença se manifesta sempre por uma subita explosão de allucinações, succedendo a excessos venereos e alcoolicos.

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